Muitos escritores atuais, fanáticos pela vanguarda, criticam a poesia revivalista por apresentar rimas pobres. Comenta-se que “a obsessão por escrever dentro da métrica (sic) e da rima provoca o uso de rimas pobres”. A afirmação não assusta pelo seu significado (apesar de equivocado, porque mesmo os versos livres possuem métrica), mas sim pela intenção. Tais pessoas, que sequer escrevem versos rimados, desconhecem que TODOS os versos possuem métrica e ainda se incomodam com “rimas pobres” nos poemas de outrem?
Sinto muito: rimas pobres tanto eu como outros poetas escreveremos. Parece que ainda não se sabe que rima pobre não é rima miserável, e que, enfim, existe diferença entre rima pobre e rima miserável!
Primeiramente, vamos estudar (é assim que os poetas autênticos sempre fizeram!) a classificação da rima quanto ao valor. Ao longo da História, sempre foi apresentado o conceito de rima quanto ao valor: pobre e rica, sendo pobres as rimas formadas pela mesma classe gramatical e ricas quando formadas por classes diferentes.
Norma Goldstein (em “Versos, Sons, Ritmos”), porém, divide em dois modos a conceituação: gramatical e fônico, o que se revela muito conveniente, pois há muito já se discutiu pela vida afora sobre rimas ricas imperfeitas (sem a mesma perfeição sonora).
“Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.”
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.”
O exemplo acima extraído do soneto “À instabilidade das cousas do mundo” de Gregório de Mattos e citado por Goldstein, é composto, pelos dois casos no que tange classe gramatical. Dia e alegria são substantivos, portanto, rimas pobres, ao passo que escura (adjetivo) e formosura (substantivo) são ricas.
O que estudamos até agora foi o tradicional critério sob a classe gramatical. Goldstein propõe a existência do critério fônico que consiste em rimas cujo som se iguala antes mesmo da vogal tônica. Para ficar mais claro, vejamos o exemplo abaixo (“Um beijo”, Bilac):
“Foste o beijo melhor da minha vida,
Ou talvez o pior... Glória e tormento,
Contigo à luz subi do firmamento,
Contigo fui pela infernal descida!”
Ou talvez o pior... Glória e tormento,
Contigo à luz subi do firmamento,
Contigo fui pela infernal descida!”
As rimas escritas em azul são pobres, a combinação ocorre a partir da vogal tônica (ida). Já as rimas grafadas em lilás começam a partir da consoante m, antes da vogal tônica (e) formando um efeito sonoro diferente do caso anterior.
A rima pode ser pobre, rica, rara ou preciosa. Os dois últimos termos são menos freqüentes, mas, ainda assim, muito usados em livros e sites.
Por rara entende-se a rima formada por poucas palavras possíveis, isto é, a terminação de tais palavras é rara, o uso depende do grau de conhecimento das palavras por parte do escritor e da ocasião apropriada.
“Um dia um cisne morrerá, por certo:
Quando chegar esse momento incerto,
No lago, onde talvez a água se tisne,
Quando chegar esse momento incerto,
No lago, onde talvez a água se tisne,
Que o cisne vivo, cheio de saudade,
Nunca mais cante, nem sozinho nade,
Nem nade nunca ao lado de outro cisne!”
Nunca mais cante, nem sozinho nade,
Nem nade nunca ao lado de outro cisne!”
As rimas destacadas do soneto mais famoso de Júlio Salusse são raríssimas. Glauco Mattoso aponta “mamãe” e “também” na pronúncia lusitana e “apanhe” e “champanhe” na pronúncia brasileira dependendo da região. Não constitui rima rica o uso de duas palavras de classes diferentes, porém homógrafas (mesmo som e mesma grafia), por exemplo, “gema” (substantivo) e “gema” (verbo gemer).
A última categoria é a denominada rima preciosa, obtida por meios artificais como o uso de pronome oblíquos. Assim define Ricardo Sérgio (Recanto das Letras): “feitas, forjadas com palavras combinadas, tais como:
[múmia com resume-a];
[vence-a com sonolência];
[pântanos com quebranta-nos];
[águia com alague-a], etc.”
Exemplo apontado (“Monólogo de uma sombra”, Augusto dos Anjos):
“Toma conta do corpo que apodrece...
E até os membros da família engulham,
Vendo as larvas malignas que se embrulham
No cadáver malsão, fazendo um s.”
Resumindo, pobre, rica, rara e preciosa constituem a tipologia da rima. Voltemos ao assunto principal da postagem: a diferença entre a satanizada rima pobre confundida com a rima miserável. A rima pobre é pobre, mas mesmo assim é considerada rima, caso contrário não desfilaria com aplausos com rimas ricas no clássico abaixo:
“Aquela triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Enquanto houver no mundo saudade,
Quero que seja sempre celebrada.
Ela só, quando amena e marchetada
Saía, dando ao mundo claridade,
Viu apartar-se dúa outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.
Ela só viu as lágrimas em fio,
Que de uns e de outros olhos derivadas
Se acrescentaram em grande e largo rio.
Ela ouviu as palavras magoadas
Que puderam tornar o fogo frio
E dar descanso às almas condenadas.”
(Luís Vaz de Camões)
E o que dizer ainda do soneto riquíssimo de Violante do Céu? A religiosa portuguesa usou um esquema rimático do qual não conheço terminologia para classificá-lo, as mesmas duas palavras!
“Se apartada do corpo a doce vida,
Domina em seu lugar a dura morte,
De que nasce tardar-me tanto a morte
Se ausente da alma estou, que me dá vida?
Não quero sem Silvano já ter vida,
Pois tudo sem Silvano é viva morte,
Já que se foi Silvano, venha a morte,
Perca-se por Silvano a minha vida.
Ah! suspirado ausente, se esta morte
Não te obriga querer vir dar-me vida,
Como não ma vem dar a mesma morte?
Mas se na alma consiste a própria vida,
Bem sei que se me tarda tanto a morte,
Que é porque sinta a morte de tal vida.”
Resta então a dúvida: teriam sido Camões e Violante do Céu menos inteligentes por usarem rimas pobres? Pouco a pouco a conclusão que nosso raciocínio tece é de que a questão não está na rima ser ou não pobre e sim no uso. Como descobrir então isso? Os gigantes Olavo Bilac e Guimarães Passos explicam (Tratado de Versificação, de 1910, com ortografia anterior à reforma de 1911):
“Nem todas as rimas têm o mesmo merito. As em ão, ar, aão, ava, issimo, etc, são vulgares. Mas não aconselhamos o abuso das rimas difficeis, que quasi sempre sacrificam a emoção.
As rimas, para ter grande valor, devem ser de índole grammatical differente. Deve-se procurar para a rima de um substantivo, um verbo; para a de um adverbio, um adjectivo, etc., etc., de modo a evitar a pobreza e a monotonia.
Os verbos, os substantivos e os adjectivos bem combinados são os vocábulos que dão as rimas mais dignas de um bom poeta.
A rima deve ser rara para não ser corriqueira, mas não tão rebuscada que possa parecer ridicula”
Dotado de bom senso, o escritor saberá o que usar e onde usar. Um texto pode ser belo mesmo abrigando somente rimas pobres se assim foi propositalmente escrito ou se não prejudica sua estética. É evidente que, como escritores, buscaremos sempre a perfeição da arte e, assim, intercalar pobres e ricas torna-se uma possibilidade, porém sem fanatismos.
Mister se faz também perceber que muitas vezes a rima pobre vira rica no contexto do poema. Nos versos abaixo (“Nós, os pobres mortais”, Rommel Werneck), utilizei a mesma palavra/ rima duas vezes:
“Oh! No mar que nascestes um dia
Nessas vossas espumas fatais
Em que sois nossa grande poesia!
Já que vós nos Elíseos reinais
Vinde cá visitar algum dia
Vossos servos, os pobres mortais!”
Terá sido por falta de opções? Não, mas por estratégia poética - na primeira vez em que aparece, “dia” refere-se ao nascimento de Vênus; na segunda, é o desejo pela visita dela aos “pobres mortais”. O texto é a combinação entre o plano sonoro (rimas, metros, recursos etc) e o plano semântico (figuras de linguagem, mensagem que o texto quer passar, chave de ouro etc). Daí, rimas pobres e repetições constituem um valioso instrumento de combinação de tais planos.
DESCENDO
Hendecassílabo à Nilza Azzi (5ª, 7ª e 11ª)
Pelos degraus vou seguindo escorregando...
Quem sabe eu me torne um grande pé de valsa...
Decadentemente, apenas deslizando
Por antigas águas duma vida falsa!
Os elevadores caem em tom brando
Descendo as fatais cascatas numa balsa
Estilosamente, apenas inclinando...
Eu já disse, sou recente pé de valsa!
A balsa prossegue pelas velhas águas...
E como não posso nunca com as mágoas
Continuo pelo mar do retrocesso
E por desejar talvez um bom progresso
Eu vou rastejando até sobreviver
Descendo até onde não dá pra descer!
Os versos acima escritos por mim estão estruturados majoritariamente em rimas pobres. Tendo em vista que meu objetivo foi escrever sobre a decadência humana (“descendo até onde não dá pra descer!”), julguei coerente o uso de rimas pobres e uma linguagem mais direta (porém com artifícios literários básicos). Se o poema é “de fossa” e celebra a decadência humana, por que não “apodrecer”, isto é, externalizar a banalidade que o texto fala? Tudo consiste em buscar a harmonia entre o plano semântico (conteúdo) e o plano fônico (som).
Além da lição de Bilac e Passos (ibidem), há diversos outros casos: em uma conversa, a escritora Eliane Arruda citou um soneto satírico de Bocage, e o escritor Ivan Eugênio da Cunha citou Camões. São belos versos e que também apresentam rimas pobres numa quantidade significativa. Repetindo: seriam os dois ilustres poetas lusos inferiores por terem feito isso? E os poetas atuais que nos acusam de “plágio”, “cópia”, “poesias batidas e óbvias”, “rimas pobres”, “obsessão por métrica” etc? Serão eles melhores por não escreverem como nós? Se o que faz um escritor bom não é a “métrica”, com certeza não será o uso de versos livres e brancos que definirá algo. Alguém ainda tem dúvidas sobre a autenticidade dos versos brancos, por exemplo?...
Não devem os escritores de outros estilos e temas condenarem quem se dedica ao revivalismo literário, muito menos usando do critério de que “rima pobre estraga um poema”. O que queremos? Literatura ou Hipocrisia?
ROMMEL WERNECK
BIBLIOGRAFIA
BILAC, Olavo e PASSOS, Guimarães. Tratado de Versificação. http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00292800#page/1/mode/1up
Acesso em 11. fev. 2012
CAMÕES, Luís Vaz de. Aquela leda e triste madrugada. http://pt.wikisource.org/wiki/Aquela_triste_e_leda_madrugada Acesso em 11.fev.2012
CÉU, Soror Violante do. Se apartada do corpo a doce vida,. http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/violante.htm Acesso em 11.fev.2012
GOLDSTEIN, Norma. Versos, Sons, Ritmos. São Paulo: Ática, 1986. 3ª ed.
SÉRGIO, Ricardo. Rimas pobres, ricas e raras. Estudos Literários. http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/93650 Publicado em 03. jan. 2006.
WERNECK, Rommel. Nós, os pobres mortais e Descendo. www.poesiaretro.blogspot.com Acesso em 11. fev. 2012
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