1. INTRODUÇÃO
“A grande
colmeia da poesia não é habitada por zangões. O mel coletado de cada flor é o
resultado de trabalho e indústria.”
William Caswell Jones (1897, p.328)
É possível ler a maioria dos tratados
clássicos de versificação digitalizados gratuitamente na internet. Acontece que
embora hoje haja demasiadamente mais materiais acerca de Versificação na
internet do que quando comecei (anos 2000s), alguns títulos apenas são
possíveis de encontrar graças ao bom uso de palavras-chave, nome do autor,
termos, título, ano etc. Quem deseja conhecer o tratado de versificação do
início do século precisa conhecer os nomes de Olavo Bilac, Guimarães Passos,
Manuel do Carmo, Manuel Bandeira. Quem deseja compreender o pós-modernismo,
pode ler Amorim de Carvalho, Norma Goldstein, Rogério Chociay etc. Os devotos
do século XVIII precisam saber quem foi Miguel da Costa Guerreiro. Assim como
quem quer escandir em inglês, Tom Hood, Paull Franklin Baum, William Caswell
Jones… Infelizmente alguns outros livros muito interessantes são raros e
disponíveis apenas fisicamente.
Ou seja, teoricamente, esta simples
postagem não seria necessária. Jamais serei capaz de ensinar tão bem como os
tratadistas fizeram. No entanto, existem as questões já citadas e abundam
informações erradas sobre versificação, sejam elas por rigoristas que se sentem
no direito de cancelar até Olavo Bilac e Augusto dos Anjos em grupinhos de
whatsapp por uma sinalefa (canal indireto, !) ou por modernetes que acreditam
que toda versificação é errada e ultrapassada.
2. ÚLTIMO ACENTO PREDOMINANTE
Sílabas poéticas ou métricas são diferentes de sílabas gramaticais. A fonética guia a música e, por conseguinte, a poesia. Por isso, na contagem de sílabas de um poema o ouvido nos importa, ele é a regra e não a gramática convencional. Na esmagadora maioria dos casos, o número de sílabas poéticas é menor que de gramaticais.
O primeiro princípio é de contarmos
as sílabas até a última sílaba tônica descartando as átonas que vierem depois.
Chamamos este fenômeno de contagem francesa, tradição francesa ou sistema
francês de Versificação. Esta doutrina foi elaborada por Miguel do Couto
Guerreiro (1782), mas foi o Visconde de Castilho que a difundiu a partir de
1851. Observem o exemplo:
Como podemos notar, o verso inicial
do soneto Demóstenes possui a mesma
quantidade de sílabas gramaticais e poéticas, obviamente se desconsiderarmos a
sílaba (RA), teremos doze sílabas. Este é um caso de coincidência porque outros
fenômenos ocorrem no ritmo do verso, da qual falarei na próxima seção.
O verso acima apresenta coincidência total de sílabas poéticas e gramaticais já que a última palavra é monossílabo tônico (verso agudo). Mas esta coincidência é rara porque outros elementos contam na Versificação.
Abaixo, o verso finaliza com palavra
paroxítona: descarte de apenas uma sílaba. Chamamos este tipo de verso de verso
grave:
Verso que finaliza com palavra
proparoxítona se chama esdrúxulo e
nele duas sílabas serão jogadas fora. Observem que neste próximo caso há 13
sílabas gramaticais, mas 10 poéticas. Além da contagem francesa, há outro
fenômeno que veremos na seguinte seção.
3.
SINALEFA
Vogais átonas
podem ser agrupadas na mesma sílaba. O que naturalmente seriam duas ou três
sílabas gramaticais podem equivaler a uma sílaba poética somente. Este fenômeno
se chama sinalefa ou elisão.
Os dois versos possuem 10 sílabas
poéticas, mas 12 gramaticais. As sílabas removidas ou acopladas a outras são
chamadas de “intrusas” por Duque Estrada (1914: p. 54). Nestes versos do poeta
mineiro temos apenas casos em que todas as vogais da sinalefa são átonas. Mas
há os casos em que temos átona + tônica
onde a sinalefa também ocorre.
Sabemos que a poetisa potiguar seguiu
a doutrina da sinalefa porque todos os outros versos são heptassílabos (7
sílabas). Poderia ter aplicado a dialefa separando as vogais, todavia não o
fez. O assunto aparecerá em outra seção.
Alguns, sabiamente, denominam a
sinalefa de vogais idênticas como crase.
Tem sido aceito a sinalefa de até 3
ou 4 vogais átonas. H inicial, excetuando nomes estrangeiros e próprios, não
tem som em português, portanto aplica-se sinalefa. No exemplo que veremos
existe sinalefa de H e três vogais juntas.
A existência de hífen não tem sido impedimento:
Vogal tônica + vogal átona: sinalefa polêmica. Via de regra,
a vogal tônica não permite absorções.
REGRA 2 — A vogal mais fraca, menos accentuada e menos pausada, é a mais fácil de absorver na que vem immediatamente depois : o que quer dizer que as mais accentuadas, mais fortes e mais pausadas só se elidem violentamente. (BILAC, O. e PASSOS, G., 1907, p.40)
Escreve Castilho (1873, p. 16): “Vogaes mais ou menos difficeis de absorver.
Há vogaes mais ou menos duras: em geral, o O é mais duro que o A, o A mais que
o i, o i mais que o E.” Também Duque Estrada (1914, p.56): “As vogaes de mais fácil absorpção, por
serem quasi sempre brandas, são o E e o A;”
Isso significa que a vogal E, seja aberta ou fechada, pode elidir embora a
visão geral seja de proibição ou polêmica. Alguns alegam que a conjunção
explicativa de resposta PORQUE é uma oxítona, não sendo permitida a sinalefa do
E, mas observemos o poeta e tratadista Olavo Bilac:
Augusto dos Anjos é fã das sinalefas em E tônico:
O poeta de Santo Amaro faz a sinalefa de A tônico e A átono:
Em contrapartida, ditongo tônico + vogal = sem sinalefa, duas sílabas distintas
Duas vogais tônicas são duas sílabas tônicas, dois materiais fonéticos, duas realidades diferentes, há separação sem umbra ou penumbra de dúvida.
Resumo da doutrina da sinalefa no soneto cujo título é, muito provavelmente, o
maior da
língua portuguesa:
4.
SINÉRESE
Como você pôde notar, é possível
diminuir a quantidade de sílabas jogando as paroxítonas e proparoxítonas para o
fim do verso e deixando as vogais átonas próximas causando elisão. Obviamente,
tais seleções devem ser pensadas também na Sintaxe, no sentido do texto, nas
rimas, no entendimento…
Mas ainda existe um recurso que
também diminui as sílabas. Tradicionalmente, o encontro de semivogal + vogal (e
vice-versa) recebe o nome de ditongo. Hiato é encontro de duas vogais,
portanto, há separação de sílabas. Todavia, podemos converter alguns hiatos em
ditongos, esta prática se chama sinérese
e foi muito usada no Parnasianismo.
Mas a sinérese não ocorre quando queremos, mas sim quando as condições fonéticas são favoráveis. Há basicamente duas localizações de hiato de uma palavra. Uma delas é quando o hiato (a separação dos sons vocálicos) se dá envolvendo uma sílaba tônica, como ocorre no exemplo acima. A gramática nos ensina que a palavra seria “pom/pe/an/do”, todavia a poetisa paulista optou por unir E + A numa única sílaba sendo que AN abriga a sílaba tônica.
Outra sinérese igualmente lícita, mas foneticamente superior é aquela que não envolve a sílaba tônica. O belíssimo soneto Em Sonda, está recheado dos dois casos:
Opinião similar em Consolidação das Leis do Verso. Escreve
Manuel do Carmo (1919, p. 54, Art. 95): “Há
tanto mais facilidade para a absorpção de que fala o artigo anterior, quanto
mais accentua a cesura que se lhe segue,
ou que a precedeu.”
Se o hiato apresenta a sílaba tônica no seu primeiro som vocálico, não convém
fazer a conversão de hiato em ditongo (sinérese). Observem o primeiro verso do
texto mais conhecido da gaúcha Delfina Benigna:
Não podemos pronunciar LUA em uma única sílaba. Poderia existir sinérese em
PRATEADA onde a vogal A configura sílaba tônica (tônica posterior), mas com a
tônica ocorrendo antes (anterior), nosso “hiato decrescente” virar ditongo
parece violência sonora.
De um modo geral, U é som vocálico
que se destaca bastante. No caso da
sextina dupla de Duarte Dias, temos o adjetivo perpétuas. Há um imenso debate
na gramática se essa palavra é paroxítona (per-pé-tuas) ou proparoxítona
(per-pé-tu-as). Mesmo que a consideremos proparoxítona, o autor optou pela
sinérese, perfeitamente legal, uma vez que a tônica está na sílaba anterior
favorecendo a aceleração da sílaba posterior e átona.
Voltemos à autora de Eldorado
Paulista. A palavra luar, pelo seu U sinuoso, não deveria configurar uma
sílaba, mas no soneto Em Sonda (meu favorito de Francisca), a célebre
parnasiana optou por uma polêmica sinérese, o mesmo não vemos em outro texto.
No entanto, a sinérese é um recurso
facultativo e estilístico, pode ser desprezado e há quem opte por não usar ou
usar raramente. O verso do
campineiro Francisco Quirino dos Santos não apresenta sinérese: duas
sílabas distintas em o/ce/a/no:
O tratadista francês Auguste Dorchain (1910, p. 77) explica que o ouvido
percebe o hiato convertido em ditongos
por meio de uma aceleração de sons vocálicos. A velocidade, portanto, julga
sinérese e diérese. Obviamente, o autor utiliza exemplos do francês, mas
resumidamente sua tese de aceleração fará sentido em português.
5.
DIALEFA
Alguns
autores fazem distinção entre sinalefa e elisão, diferenciam dialefa e diérese
alegando que diérese é a conversão de ditongo em hiato na mesma palavra e
dialefa seria o mesmo fenômeno mas entre duas ou mais palavras.
Em
convicta lucidez, encerra a matéria, Chociay (1979, p.28):
O
conhecimento da pronúncia do tempo e lugar do poeta seria interessante para a
cabal elucidação de todos os casos de sinérese e diérese. À falta deste, o
melhor é estudarmos, comparativamente, na própria obra do poeta, as ocorrências
dos mesmos vocábulos com seus grupos vocálicos ora unidos, ora separados. Com
isso atingiremos, se não todos, pelo menos os exemplos cabalmente
demonstrativos da técnica de sinérese e diérese do poeta.
6.1 ADIÇÃO
Por
adição no início da palavra, há a prótese:
levantar por alevantar; baixar por abaixar. Este fenômeno não existe apenas na
ciência versificativa, mas também na linha do tempo do idioma. Assim, com o
tempo, baixar cedeu espaço para abaixar. Tal como a palavra latina stella se tornou estrela. O recurso da
prótese não parece ser o mais usado.
No
verso do poeta curitibano mencionado abaixo, o acréscimo de A no verbo avoar
não alterou a quantidade de sílabas, mas poderia ter alterado se fosse usado no
começo do verso ou onde não coubesse sinalefa. Geralmente, a adição de A +
VERBO confere um tom popular ao poema.
Epêntese
é o acréscimo no interior da palavra. O clássico exemplo é Marte por Mavorte.
Há um tipo de epêntese chamado suarabácti ou anaptixe que consiste em “reinterpretar” sons consonantais conferindo divisão, adição de sons. É o caso das letras mudas, por exemplo absinto virar abisinto ou metrificar magma como maguima etc Mas acho mais diferente e didático aqui explanar o caso do dífono /KS/ tão bem representado pelo grafema X no verso do outro poeta curitibano de nome bem parecido e contado como uma só sílaba:
Se
o acréscimo é no fim da palavra, chamamos de paragoge:
Como
sabemos que existiram as alterações? Porque os outros versos são isométricos e
os casos que expus possuem brechas fonéticas.
Sobre os metaplasmos de acréscimo, convém recordar que eles são bem
“datados”, os românticos, por exemplo, possuem uma forte predileção à fala
popular, o que favoreceu o exemplo acima de F. Varela. Em suma, para recursos
que adicionam sílabas. Chociay (1979, p. 22) prefere usar o termo geral
ampliação e parece-me justo usar termos mais simples.
6.2 SUBTRAÇÃO
Recursos
de diminuição costumam ser mais frequentes já que os poetas precisam de mais
espaço nos versos. O total oposto da
prótese é aférese onde omitimos uma
sílaba inicial como faz o poeta moçambicano:
Síncope
é o processo eliminatório do interior da palavra como humildemente por
humilmente (os dicionários têm registrado as duas palavras), pérola por perla
(outra dicionarizada ainda que em variante popular e hispânica).
Diminuir
no final do verso significa apócope. Perdoem–me pela referência, mas é pela
matemática versificativa:
7.
OUTROS FENÔMENOS
A dificílima palavra ectlipse descreve quando o M final da preposição COM é abolido possibilitando uma polêmica sinalefa:
No
poema Rosa no mar!, Gonçalves Dias
utiliza um esquema heterométrico, mescla de verso de 7 sílabas com verso de 3
sílabas. Sinafia é um processo de
equivalência silábica entre dois versos. Uma forma é quando a primeira sílaba
do verso é acoplada à última sílaba átona do verso anterior. Este fenômeno
medieval foi revivido pelo autor maranhense e garante a presença de 3 sílabas
poéticas em um verso. Com isso, o verso abaixo perdeu 1 sílaba. A sinafia está
em roxo:
A
palavra grega synapheia é cognata da
palavra sinalefa. Em termos práticos, o que aconteceu acima foi a junção em
crase das vogais AA. LA + A. Mas abaixo temos sinafia por adição. Considerando
que o poema A Valsa é composto por versos dissílabos, tudo em roxo abaixo
pertence ao segundo verso:
É
por isso que Geir Campos (p.183) facilita a nossa vida ao denominar o efeito
sinafia como compensação.
8.
OUTROS SISTEMAS
Existem vários critérios de contagem de sílabas poéticas. Nossos irmãos hispânicos não aplicam a contagem francesa. Isto significa que eles contam a sílaba átona de toda palavra paroxítona. Em oxítonas acrescem 1 sílaba (invisível) e na proparoxítona apenas 1 pós-tônica é contada. O critério é adotado também pelos italianos, por isto os versos hendecassílabos equivalem ao decassílabo, os octassílabos ao heptasílabos e assim por diante. Os ingleses adotam a contagem francesa, mas sua métrica está baseada no sistema quantitativo de pés. Convém sempre lembrar que ao escandir versos anglófonos devemos mirar na pronúncia do inglês sempre recordando as muitas consoantes e vogais mudas (que não constituem uma sílaba), portanto os versos ingleses são menores do que parecem…
9. 9. CONCLUSÃO
A
Versificação foi construída ao longo dos séculos sofrendo ideias divergentes,
influências externas, vivendo reviravoltas, acrescentando pontos, subtraindo
outros… Tivemos várias escolas literárias (Barroco, Romantismo, Renascença,
Simbolismo…) e dentro delas tendências diferentes (Gongorismo, Quevedismo,
Tenebrismo), escritores que estão com um pé no Parnasianismo e outro no
Simbolismo, por exemplo. Cada período literário teve sua fase da língua
portuguesa, viveu um conjunto específico de valores estéticos, possui autores
considerados modelos. Parece-me que cada escola literária tem o seu tratado de
versificação… “Na história de cada literatura se comprova que umas vezes
pode-se eleger uns elementos, e outros, outros e aí a possível simultaneidade,
de vários sistemas de versificação.” Caparrós, (2014, p.39)
Em
suma, Versificação é uma catedral de versos edificada ao longo dos séculos, com
opiniões, visões, perspectivas diferentes, contrastantes, anacrônicas e
diversas. Quem contar as sílabas poéticas ou se aventurar na arte de escrever
trova, soneto, sextina, silvas etc deverá compreender a lógica versificativa e
não a mera aplicação de um conjunto de regras.
Devemos recusar o radicalismo rigorista de buscar defeito no verso do
colega a todo momento e fugir do radicalismo liberalista de escavar virtude no
verso de pessoas queridas e influencers só para agradar e ser descolado. Não
existe versificação sem naturalidade.
Porque
“não há arte sem técnica, nem há técnica sem uma coordenação de conhecimentos
sem ciência. E toda a ciência é uma quimera se não se afirma em princípios e
leis.” Amorim de Carvalho (1981, p.36). “Ritmo é, em seu sentido mais
simples, movimento medido. (...) Toda
ação e reação é rítmica, tanto na natureza como no homem.” Paull Franklin Baum
(1924, p.3)
10. BIBLIOGRAFIA
BANVILLE, Théodore de. Petit
Triaté de Versification. Paris: Alphonse Lemerre, 1871. In: https://bibdig.biblioteca.unesp.br/items/f8d3be3c-0539-4569-8b65-68ca0dcfcf4d Acesso a 07.set.2023
BAUN, Paull Franklin. The Principles of English Versification. 3a ed. Cambridge: Harvard University Press, 1924
CAMPOS, Geir. Pequeno dicionário de arte poética. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, provavelmente 1960 ou 1961.
CAPARRÓS, José Domínguez. Métrica española. Universidad Nacional de Educación a Distancia: Madrid, 2014
CARMO, Manuel do. Consolidação das Leis do Verso. São Paulo: Casa Duprat, 1919
CASTILHO, Visconde de. Tratado de Metrificação Portugueza. 4a ed. Porto: Livraria Moré-Editora, 1874
CHOCIAY, Rogério. Teoria do Verso. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1974
DORCHAIN, Auguste. L'art des vers. 12a ed. Bibliothéque des Annales: Paris, provavelmente 1910
DUQUE-ESTRADA, Osorio. A arte de fazer versos com um dicionário de rimas ricas. 2a ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves e Cia, 1914.
JONES, William Caswell. Elements
and Science of English Versification. Buffalo: The Peter Paul Book Company,
1897.
TAVARES, Hênio Último da Cunha.
Teoria Literária. 6a ed. Belo
Horizonte: Itatiaia Ed. Ltda., 1978
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