quinta-feira, 17 de março de 2011

GERALDO PEREIRA


Quem ouvir hoje o samba de Geraldo Pereira talvez perceba cadências semelhantes à Bossa Nova, ritmos profundamente singulares. O samba, sincopado por natureza (herança evidentemente africana), na obra de Geraldo Pereira é muito mais “quebrado”, “sacudido”.  Se por um lado torna a música mais dançante, a letra encaixa naturalmente na música. Intuitivo e singular, Geraldo Pereira influenciou diversos artistas, desde Moreira da Silva até João Gilberto.




        Mineiro de Juiz de Fora, Geraldo nasceu em 1918, filho de Clementina Maria Theodoro e Sebastião Maria, casal que teve quatro filhos. Mané-Mané, seu irmão mais velho, tinha uma sanfona de oito baixos, que Geraldo dedilhava escondido: seu primeiro contato com um instrumento musical.     Aos doze anos foi ao Rio de Janeiro – destino de muitos juizforanos, pois a cidade é próxima – para tomar conta do botequim de Mané-Mané.
        Dois anos depois, empregado em uma fábrica de cerâmicas, teve a mão direita esmagada por descuido, deixando sequelas no seu dedo indicador. Com o dinheiro da indenização comprou um violão, que aprendeu a tocar com Aluísio Dias. Depressa começou a acompanhar choros, valsas, polcas, em moda na época. Mas foi especialmente cativado por um estilo que estava na época começando a se consolidar: o samba.
        Lapidou seu conhecimento musical visitando a casa de Alfredo Português, que também era tinha a presença de Carlos Cachaça, Cartola e Nélson Cavaquinho; aos dezenove anos, um tímido compositor, começou a se afastar do morro e ir às rodas artísticas, como a do Café Nice – ponto máximo da música brasileira. Frequentado por todos os tipos de artistas, compositores e cantores; local onde aconteciam novas parcerias, eram vendidas composições e firmados contratos.
        Mulato, alto, de olhos claros e bem vaidoso,  Geraldo não tinha dificuldades em conquistar as mulheres. Além disso, era alegre – ao contrário da fama de brigão que tinha – e contava com uma boa voz, além de tocar violão. Sair para as gafieiras, beber nos bares e ir para noitadas com mulheres tornou-se seu cotidiano.
        Apesar de ter casado - forçadamente -  com Eulíria Salustiano, não deixou a vida boêmia, tendo diversos casos, uns mais longos, outros mais curtos. Nos mais curtos ele nem se preocupava em decorar o nome.  Nesse ir e vir de amores, seu coração teve uma paixão só: Isabel Mendes da Silva, que rendeu diversas homenagens, implícitas ou explicítas, como no samba “Liberta meu Coração”:
        “Enquanto a Isabel, a rendentora, aboliu a escravidão,
        outra Isabel, tão pecadora, escravizou meu coração...
        Ai, meu viver é tão cruel!
        Liberta meu coração, Isabel!” (Liberta meu coração, 1947)
       
        Seu caso com Isabel durou até a morte de Geraldo Pereira, com rompimentos e voltas, brigando e reatando a vida inteira. Sua primeira música gravada veio em 1939, Se você sair chorando, cantada por Roberto Paiva. Geraldo Pereira logo estréia como cantor e até ator, fazendo algumas pontas em filmes como “Berlim na Batucada” e “O rei do samba”.
        Vivendo assim, na boemia e com suas composições, Geraldo compôs clássicos ímpares de nossa música. Sua temática preferida, as mulheres, são o maior pedaço de seu trabalho – uma carreira curta, que terminou quando o compositor faleceu, com apenas 37 anos. De câncer, dizem uns; com um soco de Madame Satã, dizem outros; fato é que sua morte é a parte mais polêmica da vida de Geraldo Pereira. Talvez partindo cedo demais, Geraldo deixou pouco mais de setenta composições gravadas e catalogadas, sem contar nas que foram vendidas, como “Na Subida do Morro”.
        Ao contrário de compositores extremamente diversificados na temática e gênero, Geraldo foi, antes de tudo, sambista e um grande amador das mulheres, a maior parte de sua obra. Seu samba sempre tem um tom humorístico, sarcástico, exaltado ou informal.
As heranças de Minas Gerais são pouco visíveis, talvez por algumas palavras aqui e acolá, um ritmo de calango pegado dos oito baixos do irmão Mané Araújo, misturado ao ritmo de Mangueira e a influência do samba do Rio de Janeiro. Vale lembrar que o samba é sincopado por natureza; no entanto, Geraldo Pereira fez no seu samba adaptações e nuances suaves, que permitem tornar a letra natural, próxima da fala. Comparemos, por exemplo, “Falsa Baiana”, de Geraldo, e “Sina”, de Djavan:

 “Baiana que entra na roda e
só fica parada,
não entra no samba,
não bole, nem nada,
não sabe deixar a mocidade louca...”
e
        “O luar
        estrela do mar
        o sol e o dom      
        quiçá um dia
        a fúria desse front
        virá lapidar
        o sonho até gerar o som.”
        Todas as sílabas tônicas de “Falsa Baiana” na melodia são as sílabas tônicas naturais das palavras. Em “Sina”, isso não acontece sempre, como em “estrela”, “fúria”, “sonho”; desse modo, na canção de Djavan, “estrela” pronuncia-se mais ou menos “estrelá”. Isso não constitui um erro, de forma alguma: a translação da tônica é um fenômeno da língua e da licença poética. Entre outros, esse fênomeno geralmente ocorre em função do esquema do verso ou necessidade da rima - esse último, provavelmente é o motivador da translação na canção do Djavan, já que desse modo “estrela” rima com “mar” e “quiçá”. ¹ Assim, ao recitar uma canção de Geraldo Pereira se chega quase à própria melodia!
        O violão “capenga” de Geraldo Pereira, com as harmonias tocadas de uma forma diferente, meio atrasada, antecede o estilo de João Gilberto e que deu origem à Bossa Nova. Isso 18 anos antes do “Chega de Saudade”. As melodias, ligeiras, cheias de breques, são agradáveis e fáceis de decorar. As letras falam da vida dos homens mais simples do morro, seus amores, suas angústias, por vezes suas desventuras. Como, por exemplo, a cabritada, muito apreciada:
“Bento fez anos,
e para almoçar meu convidou.
Me disse que ia matar um cabrito,
onde tem cabrito eu “tou”.
E quando o comes e bebes começou,
no melhor da cabritada
a polícia e o dono do bicho chegou...”
(Cabritada Malsucedida, 1953)
As rodas de samba - e as brigas - também são cantadas:
“Tá louca chamando pra casa, 
agora que o samba enfezou...
Estou com a turma pra cabeça,
não aborreça... vai que depois eu vou.”
(Vai que depois eu vou, 1946)
       
“Ai, que samba bom!
Ai, ai, ai, que coisa louca!
Eu também estou aí, estou aí,
que que há? Também tô nessa boca!”
(Que samba bom, 1949)
“Pessoal, vamos beber,
pra dona da casa não se aborrecer.
Vamos agradar a Dona Chica,
pra gente não perder essa boca rica...”
(Boca rica, 1950)
        Mas o samba não se limita ao simples festejar, muitas vezes sob a custódia de um mecenas. É uma parte da vida do homem do morro, é quase um costume. Pelo menos é assim nos sambas de Geraldo Pereira: parte do cotidiano. Ir ao samba, na obra dele, é como ir na igreja ou no armazém. Aliás, a mulata muitas vezes é tida como uma musa, heroína, ou até como santa:
“O meu santuário
era um caramanchão,
ela era minha santa
e meu samba a oração...”
(Ai que saudades dela, 1942)
“Abaixo de Deus foi ela,
sim, foi ela quem me ajudou...
Eu caí na cama desempregado
mas nada me faltou...” 
(Abaixo de Deus, 1947)
“A minha companheira
no mundo é a primeira
que me faz acreditar em mulher fiel...”
(A minha companheira, 1949)
Nessas  músicas, a mulata aparece como uma uma companheira que tem enorme amor e zelo pelo seu “pretinho”. São muitos os sambas em que o amante, arrependido, pede perdão à sua musa, à mulher que lhe ama de verdade:
“Entre nós houve uma contrariedade,
pra dizer a verdade
eu não guardo rancor.
Por que é que você quando passa
por mim não me dá mais bonjour?
Se eu sempre vi em você o meu rêve d’amour.”
(Pode ser, 1941)
       
“Vocês brigaram pra valer dessa vez,
e eu sei que não estás com ele há muito mais de um mês.
Será que ainda vais me deixar no abandono?
Vem, oh vem que teu pretinho está doidinho para ser seu dono...”
(Brigaram pra valer, 1949)
“Nega, vem cá,
vem ver só
como é que teu nego ficou,
depois do tal dia, neguinha,
que você me deixou...”
(Você está sumindo, 1943)
        O contrário também acontece: a mulata pode tomar a forma de ingrata, da mulher que abandonou seu amante por motivos banais:
“Eu fui buscar uma mulher na roça
Que não gostasse de samba
E nem gostasse de troça
Uma semana depois que aqui chegou
Mandou esticar os cabelos
E as unhas dos pés pintou
Foi dançar na gafieira
E até hoje não voltou”
(Até hoje não voltou, 1946)

          Esses temas eram muito próximos da vida de Geraldo Pereira, por isso aparecem em abundância. Mas outros temas, como o trabalho e a regeneração também aparecem. O melhor exemplo é a belissima música “Pedro do Pedregulho”, na íntegra:
“Pedro dos Santos
vivia no morro do Pedregulho,
quebrando o buteco, fazendo barulho,
até com a própria polícia brigou.
Vivia no jogo e quando perdia só mesmo muamba,
rasgava pandeiro, acabava com o samba,
parece mentira, Pedro endireitou.
Estelinha, o orgulho do morro,
mulher disputada, que, quando ia ao samba
saía pancada, ao Pedro dos Santos deu seu grande amor.
E ele trocou o revólver que usava, fingindo embrulho
Por uma marmita, e sobe o Pedregulho
De noite cansado do seu batedor.”

(Pedro do Pedregulho, 1951)
        A troca da malandragem e da briga pela vida doméstica e pelo amor é uma fábula antiga, que ficou muito bela nessa música. Provavelmente essa música inspirou “Tião”, composta por Waldemar de Abreu e Jair Amorim:
“Tião, Sebastião de Jesus, era o maior valentão
dele fugiam como o diabo foge da cruz.
Quem viu do que ele era capaz,
sabe que a própria polícia sempre evitava esse rapaz...
Um dia Rosinha de tal, essa fera domou com seu olhar.
E o pobre Tião, de repente, que era valente
se pôs a sonhar.
E então... era uma vez um Tião,
sua navalha vendeu para comprar um violão...”

(Tião, 1959)

        A casualidade, a fé e o “sobrenatural” também tem suas aparições. É interessante notar que isso é característico da cultura popular brasileira, de todas as regiões. ² Elementos de religiões africanas e outras crenças populares também aparecem, apesar de serem escassas as referências na obra de Geraldo Pereira.
“Desde o dia em que passei
numa esquina e pisei num despacho,
entro samba, meu corpo ‘tá duro,
bem que procuro a cadência e não acho.”
(Pisei num despacho, 1947)
“O escurinho era um escuro direitinho,
agora ‘tá com essa mania de brigão.
Parece praga de madrinha ou macumba
de alguma escurinha que ele fez ingratidão.”
(Escurinho, 1955)
“Parece que eu estava adivinhando, ó Juraci,
que hoje você vinha por aqui.
Você não morre tão cedo, eu digo isso porque
agora mesmo eu falava em você.”
(Juraci, 1954)
Geraldo Pereira olhava com certo sarcasmo o modo como a sociedade desprezava (e ainda despreza) o “morro”, esquecendo as pessoas mais pobres. O que pareceria um elogio ao governo de Getúlio Vargas, “Ministério da Economia” é antes uma sátira para chamar a atenção do governo:
“Seu presidente,
graças a Deus não vou comer mais gato,
carne de vaca no açougue é mato,
com meu amor eu já posso viver...
Eu vou buscar a minha nega pra morar comigo,
pois sei que agora não há mais perigo,
porque de fome ela não vai morrer...”
(Ministério da Economia, 1951)
Como defensor do samba, da morena, do morro e da brasilidade, Geraldo Pereira certamente olhava com deprezo os brasileiros que, pela moda da época (que perdura até hoje) vangloriavam o importado, menosprezando o nacional. Em uma das poucas e raras gravações em que Geraldo aparece como intérprete sem ter composto a letra, ele canta:
“Você diz que é patriota,
mas seu charuto preferido é o cubano.
Esquece que na Bahia, que hiprocrisia,
há o charuto baiano.
Você diz que é patriota,
Sua bebida é de marca escocesa,
Não bebe nossa cachaça,
E ergue a taça
Com a champanhe francesa.
Seu carro é americano,
Seu queijo é holandês,
Seu azeite vem da Espanha,
O seu vinho é português,
Dentro do seu palacete só se fala inglês,
Dentro do seu palacete só se fala inglês.”
Não canta nosso samba,
Não gosta de pandeiro,
Veste um tecido nosso,
Diz que é do estrangeiro.
        (Falso Patriota, 1953)


Esse mesmo Brasil que Geraldo defendia em seus sambas foi o que jogou o compositor no esquecimento. Entrevistas, depoimentos e declarações são escassas. Quem quiser rememorar esse grande sambista, comece por seus sambas, e assim chegaremos na alma de mais um compositor genuinamente nacional, que enriqueceu o panorama da música brasileira e foi diretamente responsável para o surgimento da Bossa Nova.

***

1. Nomenclatura de acordo com CHOCIAY, 1974. À guisa de curiosidade, transcrevo um verso de Castro Alves em que ocorre o fenômeno:
“Prostituta em negra órgia,
Sê hoje Lucrécia Bórgia...” Em outras situações, o poeta escreve orgia, mas, pela necessidade da rima, deslocou a sílaba tônica para trás.
2. Câmara Cascudo, por exemplo, afirma que a simpatia é um tipo de “magia” popular em todo mundo.

Nenhum comentário:

REVIVALISMO LITERÁRIO


Poesia Retrô é um grupo de revivalismo literário fundado por Rommel Werneck e Gabriel Rübinger em março de 2009. São seus principais objetivos:

* Promoção de Revivalismo;

* O debate sadio sobre os tipos de versos: livres, polimétricos e isométricos, incluindo a propagação destes últimos;

* O estudo de clássicos e de autores da História, Teoria, Crítica e Criação Literária;

* Influenciar escritores e contribuir com material de apoio com informações sobre os assuntos citados acima;

* Catalogar, conhecer, escrever e difundir as várias formas fixas clássicas (soneto, ghazal, rondel, triolé etc) e contemporâneas (indriso, retranca, plêiade, etc.).