A realidade é que, antes de nós, no Fórum do Recanto das Letras, o termo gregoriano anapéstico já existia. Embora nenhum tratadista tenha oficializado chamar o verso desta forma, o nome divulgado na internet é resultado de uma associação justa entre o Cânone e a métrica, um palpite popular fonético, conforme veremos a seguir.
Chamamos de eneassílabo o verso de 9 sílabas. Quem escreve sonetos, terzinas e sextinas aventura-se no decassílabo normalmente; os fãs de trovas, vilancetes e formas populares optam pelo heptassílabo, o que certamente resultou num isolamento dos versos de 8 e 9 sílabas. O eneassílabo foi raro em várias línguas como inglês e francês, mas nem tanto no espanhol. Da língua francesa podemos destacar um poema feito por Theodore de Banville justamente para seu Tratado. O texto abaixo, do qual destaco um trecho, possui icto na 5a sílaba:
LE POËTE
En proie à l'enfer — plein de fureur,
Avant qu'à jamais — il resplendisse,
Le poëte voit — avec horreur
S'enfuir vers la nuit — son Eurydice.
[...]
Este esquema mostra que o eneassílabo é ímpar. Curiosamente, Serge Gainsbourg refaz este formato (5+4) em sua canção Comment te dire Adieu:
Sous aucun prétex- // te je ne veux
Avoir de réflex- // es malheureux,
Il faut que tu m'ex- // pliqu' un peu mieux
O sistema 4+5 (icto na 4a casa) no poema mais conhecido de Cecília Meireles:
Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!
Contudo, o tal verso gregoriano de 2009 não seria o 5+4, o 3+6 ou o 4+5, mas sim o anapéstico (U U –), o DA DA DUM, o tripartido, o matematicamente perfeito 3+3+3, o símbolo harmonioso da divisão, o "inquestionavelmente bellissimo, compõe-se de tres metros de tres syllabas cada um", o verso que o Visconde de Castilho (1874, p.44) considera impossível de compor em outra base de ictos.
As fontes anglófonas atribuem o verso anapéstico como de uso ordinário no limerique e poemas de humor, o que faz todo sentido já que é possível inserir deboche e ironia sobre os assuntos “triunfantes” comuns no eneassílabo tripartido. Conseguem imaginar uma humorista debochada igual a tantas comuns no tiktok e nos reels? Sim? Agora, imaginem a moça ironizando uma marcha (nupcial, dança ou militar) repetindo ta ta TÁ ao mesmo tempo que sorri, vira a cara e os olhos num claro sinal de descaso… Não foi o conjunto de três elementos de som bem planejados que originou toda a cena?
Júlio Amorim de Carvalho (2009, p.12), filho do exímio tratadista homônimo, afirma o caráter bélico do verso: o “eneassílabo tripartido, 936, porque este ritmo impõe uma rigidez cíclica, de curta frequência, emprestando à expressão verbal um alor marcial: tatatátatatátatatáta, tatatátatatátatatá,
E, para isto faz uma citação de Alexandre Herculano:
Portugal, ó leão do ocidente
tu rugias à beira do mar,
Também o poeta romântico Alessandro Manzoni usa tal esquema em seu famoso poema épico Março de 1821, também de natureza marcial, daí o verso eneassílabo tripartido ser chamado pelos poetas italianos de decasillabo manzioniano (decassílabo porque os italianos não seguem a contagem francesa).
Júlio ainda demonstra que o verso eneassílabo tripartido pode ainda figurar em temas mais impressionistas e vagos como observaremos em breve. O tratadista Baun (1924, p.81) indica o anapesto perfeito como de difícil uso na língua inglesa e ainda alega que o anapesto é mais lento que o iambo, exige mais pausas já que monossílabos átonos, palavras menos importantes para constituir o pé. Talvez por isto o gosto impressionista nos versos da autora abaixo:
“Pelas margens dos olhos vazios
a correr em galopes esguios
vão cavalos de tempo nos rios.”
(Natércia Freire)
Observemos Olavo Bilac, onde a passagem do tempo é marcada em anapestos:
Sou o tempo que passa, que passa,
Sem princípio, sem fim, sem medida,
Vou levando a ventura e a desgraça,
Vou levando as vaidades da vida.
Teoricamente o compasso binário do relógio, Tic Tac, pediria um verso iâmbico (com icto nas sílabas pares) ou formato troqueu (icto nas ímpares). De fato, a estrofe acima tem acento na 1a casa embora não tenha no poema todo. Ocorre que o ritmo anapéstico ao oferecer uma terceira sílaba, uma segunda sílaba silenciosa antes da sílaba forte, acaba por favorecer a dramaticidade, a decoração, a ansiedade do eu-lírico diante da transitoriedade do tempo. Não é apenas o barulho tic-tac, mas um intervalo breve, talvez antes do Tac, talvez após… Como diz Manuel do Carmo (1919: p.74), Bilac imprime uma perfeita ideia de corrida.
Este ritmo de 3 está presente nas Artes Cênicas, nas marchas, em algumas canções, valsinhas, danças de salão, o que resultou numa associação mais afetiva, talvez daí a adoção pelos românticos. Baldick (p.11) afirma que o anapesto possui um ritmo ascendente favorecendo um eco energético de movimento.
Outra informação importante é que o toque marcial apontado por Júlio Amorim de Carvalho pode servir para obras de exaltação a Deus e a Pátria conforme Bilac faz em algumas estrofes do Hino à Bandeira:
Salve, lindo pendão da esperança
Salve, símbolo augusto da paz
Tua nobre presença à lembrança
A grandeza da Pátria nos traz
Curiosamente, o compositor do Hino Nacional Brasileiro não aprecia o verso de 9 sílabas, mas reconhece seu potencial no humor e no canto: Como exemplo de versos de nove syllabas, Osório Duque-Estrada cita estes, de toada caduca, que já se não usa, de 1880 para cá, sinão em estylo humorístico, ou em versos musicados para canto. (DUQUE-ESTRADA, 1914, p. 19)
Aos poucos vamos nos aproximando do teor oracional e filosófico do trímetro anapéstico conforme observamos em Alexandre Herculano:
No mosteiro vai fundo o silêncio;
um silêncio que gera terror;
Muito provavelmente o eneassílabo foi introduzido na língua portuguesa pela poetisa e freira dominicana Violante do Céu:
O galante que está no portal,
ai amor, que bem sabe obrigar!
Domingos Tarroso também imprime um tom melancólico e místico em um soneto em eneassílabos:
Esta triste e sombria avenida,
negro túnel de treva e miséria,
é o caminho que leva esta vida
ao viver imortal da matéria.
Finalmente, em Gonçalves Dias temos o toque marcial e religioso:
Ó Guerreiros da Taba sagrada,
Ó Guerreiros da Tribo Tupi,
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi.
Esta noite — era a lua já morta —
Anhangá me vedava sonhar;
Eis na horrível caverna, que habito,
Rouca voz começou-me a chamar.
Os poetas da internet de 2009 não tinham muito conhecimento acerca dos Tratados, mas seus ouvidos entenderam o propósito decorativo do anapesto, próprio para marchas e orações, e, assim, associaram a beleza do canto gregoriano ao verso com proposta religiosa ainda que metricamente não haja semelhança. "Este é o metro mais usado na composição dos hymnos que se destinam ao canto" (DO CARMO, Manuel, 1919: p.74). Também o tratadista espanhol Caparrós (2014, p.142) chama o eneassílabo tripartido de “decasílabo de himno” porque no sistema espanhol de escansão não se aplica a contagem francesa (por isso o verso “decasílabo” tem 9 sílabas) e reconhece a aplicabilidade do metro ao hino litúrgico ou civil. Inclusive, segundo o autor, o eneassílabo espanhol se tiver ictos na 1a, 6a e 9a é chamado de datílico esdrúxulo e sua invenção é atribuída à religiosa mexicana Juana Inés de La Cruz.
Se há uma justa homenagem ao italiano Pier Jacopo Martello ao denominar o decassílabo heroico com icto na 3a casa de martelo agalopado; se existe há a referência a Safo (dec. sáfico) nos ictos 4a, 8a e 10a; se quase todos chamam de gaita galega, moinheira ou ritmo provençal o decassílabo forte nas 4a, 7a e 10a casa, parece ter surgido também o costume de dar um apelido ao eneassílabo tripartido. Como diz nosso membro Bruno Fagundes Valine: “gregoriano é basicamente um apelido que pegou.” Afinal, o verso eneassílabo é considerado verso de arte maior. O verso de 11 sílabas com 1 iambo e 3 anapestos tem sido chamado de hendecassílabo galope à beira-mar. No entanto, uma breve pesquisa nos mostrará que, na liturgia da Versificação, ele não tinha este nome, sendo galope à beira-mar uma forma fixa na qual se exige o verso hendecassílabo específico de 1 iambo e 3 anapestos. Parece-me que os apelidos facilitaram o acesso a pessoas não tão conhecedoras da “matemática versificativa”.
De qualquer forma, o ritmo de Violante do Céu e Edu Lobo (Ponteio) não foi muito cultuado, o que significa que as principais poesias sacras, místicas e/ou de cantoria estão em outros metros como observamos em Santa Teresa d’Ávila, Gregório de Mattos, John Donne, Auta de Souza, entre outros. Sobre a poetisa potiguar, alguns nos mostrarão que ela escreveu um soneto eneassílabo, mas não foi no ritmo “gregoriano” ou tripartido.
Considero que minha pesquisa nunca se encerra, especialmente no caso de uma terminologia diferente. Diante do exposto, encaminho este estudo a uma reflexão mais pedagógica: a adoção do apelido gregoriano facilitou a referência e ainda que trímetro anapéstico e eneassílabo tripartido sejam termos mais descritivos metricamente, o termo inventado pela geração dos anos 2000 não constitui um problema de terminologia. E aproveitando o tema religioso e infinito de pano de fundo, compartilho a citação de Manuel do Carmo: “a emoção crea o rythmo; o rythmo produz a belleza; a belleza desperta a emoção!"
Rommel Werneck
BIBLIOGRAFIA
BALDICK, Chris. The Concise Oxford Dictionary of Literary Terms. New York: Oxford University Press, 2001
BANVILLE, Théodore de. Petit Triaté de Versification. Paris: Alphonse Lemerre, 1871. In: ttps://bibdig.biblioteca.unesp.br/items/f8d3be3c-0539-4569-8b65-68ca0dcfcf4d Acesso a 11.jan.2024
BAUN, Paull Franklin. The Principles of English Versification. 3a ed. Cambridge: Harvard University Press, 1924
CAPARRÓS, José Domínguez. Métrica española. Madrid: Universidad Nacional de Educación a Distancia, 2014
CARVALHO, José Maria Amorim. Teoria Geral da Versificação Vol. II
As estrofes, os sistemas estróficos e a história da versificação. Lisboa: Editorial Império LDA, 1987
____________________________. Tratado de versificação portuguesa. Lisboa: Edições 70, 1974.
CARVALHO, Júlio Amorim. O ritmo na poesia de Amorim de Carvalho. II Heterometria e isometria lírica em Verbo Doloroso. In: Rhythmica, VII, 2009
CASTILHO, Visconde de. Tratado de Metrificação Portugueza. 4a ed. Porto: Livraria Moré-Editora, 1874
CARMO, Manuel do. Consolidação das Leis do Verso. São Paulo: Casa Duprat, 1919
DUQUE-ESTRADA, Osorio. A arte de fazer versos com um dicionário de rimas ricas. 2a ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves e Cia, 1914. In: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3818 Acesso em 11.set.2023
GOLDSTEIN, Norma Seltzer. Versos, sons, ritmos. 14a ed. rev e atualizada. São Paulo: Ática, 2006. In: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/6260998/mod_resource/content/1/versos%20sons%20ritmos%20goldstein.pdf Acesso a 23.set.2023
MATTOSO, Glauco. O sexo do verso: machismo e feminismo na regra da poesia. Publicação independente: 2010
Revista Árvore, folhas de poesia, primavera e verão de 1952. Direção e Edição de António Ramos Rosa, José Terra, Luís Amaro e Raul de Carvalho. IN:
https://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/periodicos/arvore/N03/N03_master/AArvoreN03_PrimaveraVerao1952.pdf Acesso a 11.jan.2024
SAINT-AMAND, François. Retour sur l'influence de Serge Gainsbourg sur "Comment te dire adieu" de Françoise Hardy. IN: RTBF, 22.out.2020 IN: https://www.rtbf.be/article/retour-sur-l-influence-de-serge-gainsbourg-sur-comment-te-dire-adieu-de-francoise-hardy-10614964
Acesso a 11.jan.2024
2 comentários:
Muito interessante!
Quanto conteúdo bacana. parabéns. Tenho muito a aprender!
Postar um comentário